Seja de que modo for, para mim, a Páscoa é também em grande parte o afluir de memórias de tempos idos, quando o dia da Ressureição era significado de ida à Régua com a intenção de se comprar roupa nova. Cara lavada e roupa a reluzir, era no interior esquecido de Portugal condição essencial na visita pascal num tempo que já lá vai há anos suficientes para me começar a pintalgar a cabeça de branco.
Isso, mais a laranja encima da mesa a fazer par com o envelope com a côngrua para o abade e o cordeiro assado a escorrer no arroz em forno de lenha. Em aldeia que o fosse, repasto assim, só mesmo também em dia do Padroeiro. Nos outros, rezava-se e fazia o sinal da cruz sobre os lábios para entreter a gula, que se dizia ser um dos pecados capitais, só por si suficiente para bilhete de ida sem vinda para junto do mafarrico.
Não sou de saudosismos, mas a sério que quem me dera nessa época. Não que tenha saudades em jeito de quem quer retorno de modos de vida, não senhor. Serão antes saudades de mim próprio e da altura da vida em que a eternidade era pouco menos que dado adquirido, ou não fosse por sua vez a Páscoa significado de vitória sobre a morte, pelo menos nas palavras escutadas na catequese em aulas que nos preparavam o merecimento de um canto no céu bem à sombra das nuvens por causa do calor.
Ainda me lembro dos bolos podres, cujo nome nunca entendi. Por acaso ainda um dia me hei-de dar ao trabalho de descobrir a causa de semelhante baptismo. Bem sei que os ditos ainda existem e que até se incrementou o seu fabrico, mas como aqueles, por mais que andem, não fazem igual. Para já os ovos. Acham que ainda encontram galinhas por aí a laurear todo o santo dia na rua a picar no chão para encher o papo? E forno aquecido com lenha de giesta, a melhor para a cozedura da massa amassada amarela por causa dos ovos?
O Domingo de Páscoa era dia de festa entre os dias de festa. Nem sei mesmo se não suplantaria o dia de Natal em termos de emoção. Era mais alegre. Simbolicamente equivaliam-se dado que num e noutro se celebrava e celebra a vinda de Cristo, mas o simples facto de a Páscoa ser na Primavera, dava-lhe outro encanto. Nem sequer faltavam foguetes no ar anunciar a saída do padre e seus acompanhantes com a cruz para a vista a cada lar da aldeia, todos previamente preparados com varreduras de cima a baixo e soalhos esfregados com água e sabão, pois ter portas adentro que se iria ter merecida todos os cuidados do mundo.
No dia propriamente dito, podia e pode até estar a chover como tantas vezes sucede, mas a estação das andorinhas é sempre a estação das andorinhas e de mais as sementeiras nas hortas. Só as vistas da paisagem com a terra lavrada amanhada, alisada e direita com régua e esquadro a cobrir as sementes, empanturravam a alma mesmo de quem não de poesias e suas coisas.
Sabemos que o povo não é suposto como dado a sentimentalismos, porque se tem que estes não enchem barriga. No entanto, a maneira como se entregava e entrega ainda ao granjeio em nada fica a dever ao empenho com que o mais pintado dos poetas dá forma aos seus versos.
Mas obra de arte também era o salpicão com ovos fritos para a merenda no dia em que se metia o lavrador com a sua junta de bois a lavrar a terra. Ainda agora me escorre água da boca só de me recordar o petisco degustado mesmo ali no terreno encima da toalha estendida, comido com as mãos sujas com a terra igual à que um dia nos há-de comer, mas que enquanto por cá andarmos neste vale de lágrimas, nos dá sustento minimamente devido.
São memórias simplesmente. Obviamente que não farão os anos andar ao se traz, mas permitindo-me saber de onde venho, ajudam-me a ir para a frente, redimindo-me como posso dos erros para que venha a ser uma pessoa melhor. A Páscoa também é isso. Duvidam? Perguntem a quem sabe que eu agora vou dar uma volta por aí.